Francisco Maria Esteves Pereira (Miranda do Douro, 1854 – Lisboa, 1924)
Francisco Maria Esteves Pereira iniciou a sua formação no Liceu Nacional do Porto (1871-1874), onde fez os exames que lhe dariam acesso ao primeiro curso da Escola Politécnica de Lisboa (1875-1879), que concluiu com distinções várias. Por ocasião do pedido de matrícula na Escola, a 11 de outubro de 1875, era já soldado aspirante a oficial da 4.ª Companhia e do Batalhão de Caçadores n.º 3. Terá sido nesse ano de 1875 que enveredou pela carreira militar, ao assentar praça a 4 de agosto. Foi a 22 de dezembro de 1879 que obteve a carta de conclusão do ano preparatório, era então alferes-aluno de Artilharia n.º 1. De seguida, cursou, também com distinção, Engenharia durante três anos na Escola do Exército em Tancos (1880-1883). Foi promovido a alferes a 10 de janeiro de 1883, ascendeu a tenente a 28 de janeiro de 1885, a capitão a 30 de dezembro de 1893 e a major a 15 de janeiro de 1904. Por decreto de 25 de outubro de 1910, foi promovido a tenente-coronel. A 12 de agosto de 1916 passou à reserva.
É por volta de 1888, aos 34 anos de idade, que inicia oficialmente a sua atividade orientalística de cariz marcadamente filológico, com a publicação da tradução anotada História de Minás Además Sagad, Rei da Ethiopia. Esta granjeou-lhe, em 1890, a condecoração com a Estrela de Honra da Etiópia. Antes da obra que o consagrou, publicou três artigos, um dos quais, no Bulletin de correspondance africaine, em 1886, dá conta de que faria já parte do círculo de amizades e trabalho de René Basset, especialista em línguas árabe e berbere. Desde o início do seu percurso que Esteves Pereira contou com o patrocínio deste orientalista francês; foi por intercedência de René Basset e de Barbier de Meynard (1826-1908), quando vice-presidente da Société Asiatique de Paris, que foi nomeado para membro desta prestigiada instituição a 13 de janeiro de 1888.
Os interesses de Esteves Pereira incidiram sobre as línguas semíticas (Etiópico, Copta, Hebraico, Árabe, Aramaico, Siríaco) e também indo-europeias, nomeadamente o Sânscrito – língua que estudou numa fase mais tardia da sua vida, com Sebastião Dalgado. Com efeito, os seus trabalhos de sanscritologia aparecem a partir de 1917. Foi, no entanto, na literatura e na língua da Abissínia que se especializou, isto é, em Geês, em que foi autodidata. Considerado pelos seus pares como o fundador dos Estudos Etiópicos em Portugal, continua a ser o único especialista português de renome na área e veio a ser muito estimado nos meios orientalistas do seu tempo.
Guilherme de Vasconcelos Abreu acompanhou desde cedo o percurso deste etiopista promissor, que se distingue com uma atividade de escrita fecunda, versando o Oriente cristão e desenvolvendo estudos de crítica textual, e também de crítica histórica e literária, que visavam sobretudo a compreensão da língua etiópica e do sistema de escrita em Geês, assentes num intenso trabalho de edição e tradução de textos religiosos (litúrgicos e hagiográficos) e crónicas, com relevância histórica para a cultura europeia.
Logo em 1886, Esteves Pereira tornou-se sócio ordinário da Sociedade de Geografia de Lisboa; foi vice-presidente da Comissão Asiática em 1893, ao lado de, entre outros, Gonçalves Viana, sob presidência de António Lopes Mendes e tendo Constâncio Roque da Costa e David Lopes por secretários. Em 1901, tornou-se sócio (correspondente nacional) do Instituto de Coimbra, em cujo periódico imprimiu diversos trabalhos. Em 1908, foi aprovado como sócio correspondente de segunda classe da Academia das Ciências de Lisboa; dez anos mais tarde, passou a sócio efetivo, na 4.ª secção de História e Arqueologia, e chegou a exercer a função de tesoureiro, que desempenhava ainda por ocasião da sua morte, para além de participar ativamente nas sessões da Academia – ao lado de outros sócios efetivos como Cândido de Figueiredo, José Leite de Vasconcelos ou Cristóvão Aires. Por iniciativa da Segunda Classe, criou-se a coleção Monumentos da Literatura Dramática Portuguesa, na Imprensa Nacional, em que, entre 1918 e 1919, publicou textos que recuperou da tradição dramática.
O seu nome era frequentemente mencionado e a sua obra recenseada em periódicos internacionais que assim confirmam a projeção do autor e o impacto dos seus trabalhos, como Le Muséon: revue d’études orientales(Louvain), Analecta Bollandiana (Bruxelas), Zeitschrift der Deutschen Morgenländischen Gesellschaft (Wiesbaden), Revue sémitique d’épigraphie et histoire ancienne (Paris), Journal asiatique (Paris) ou Revue de l’Orient chrétien (Paris), colaborando diretamente em alguns deles. Participou também em duas importantes coleções especializadas, Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium (Roma) e Patrologia Orientalis (Paris), com traduções anotadas de sua autoria.
Para além das relações próximas com René Basset, correspondeu-se com a comunidade orientalista tanto europeia como internacional, apesar de, do seu espólio, conservado na Academia das Ciências de Lisboa, não constarem espécimes de trocas epistolares. Sabe-se que Esteves Pereira manteve correspondência com o etiopista Jules Perruchon (1853-1907), com Casimir Mondon-Vidailhet (1847-1910), conselheiro de estado da Etiópia e docente na École des langues orientales, em Paris, e Gabriel Ferrand (1864-1935), linguista e cônsul geral de França, que participou no XIV Congresso Internacional de Orientalistas, em Argel, onde Esteves Pereira poderá tê-lo conhecido.
O seu nome surge pela primeira vez ligado aos Congressos Internacionais de Orientalistas em 1892, aquando do X Congresso agendado para Lisboa, mas desconvocado de véspera. Por um lado, foi associado à comissão executiva deste congresso enquanto presidente da secção de Geografia Histórica da Sociedade de Geografia de Lisboa, a instituição organizadora. Por outro, preparou e veio a publicar, sob o patrocínio da Sociedade, três textos que marcam a sua estreia nestes congressos: Chronica de Susenyos, Rei de Ethiopia (em dois volumes, 1892 e 1900, correspondendo o primeiro à [primeira] edição do texto etiópico e o segundo à respetiva tradução); Vida do Abba Samuel do Mosteiro do Kalomon (texto etiópico e respetiva tradução); e A Peça de Diu, em coautoria com o arabista David Lopes.
No XI Congresso, que decorreu de 5 a 12 de setembro de 1897, em Paris, no âmbito do qual David Lopes publicou “Note historique sur l’Inde”, Esteves Pereira ter-se-á apresentado como mero ouvinte sem qualquer intervenção oral. O seu nome consta da lista de membros, para além de o seu então recente trabalho de edição da Vida do Abba Daniel do Mosteiro de Sceté (1897), feito em colaboração com Lazarus Goldschmidt (1871-1950), ter sido ali objeto de apresentação pública; no entanto, na ata relativa aos trabalhos que tiveram lugar na secção Semítica do congresso, a 11 de setembro (sábado), não é marcado como presente. Do seu espólio consta, porém, um bilhete de comboio, de ida e volta, através de Bordéus, válido até 21 de setembro de 1897, e com tarifa reduzida por conta da participação no congresso.
Em 1905, supõe-se que tenha estado na Argélia por ocasião do XIV Congresso, por ter oferecido o texto “Homilia de Proclo, Bispo de cyzico, acerca da incarnçaão [sic] de Nosso Senhor Jesus Christo. Versão ethiopica”. Esta sessão foi subscrita por Joaquim Mendes dos Remédios e David Lopes, tendo apenas o último remetido um estudo para inclusão no volume de atas, publicado juntamente com o de Esteves Pereira. Não se conseguiu apurar, até à data, outras permanências do orientalista português em território africano, nem mesmo na Etiópia, também não sendo certo que tenha de facto estado na Argélia, apesar de o seu espólio incluir, ainda que por preencher, uma carta de congressista, bem como cinco circulares dessa décima quarta sessão do Congresso dos Orientalistas e outras informações de ordem prática.
A par da intensa atividade orientalística, Francisco Maria Esteves Pereira foi (co-)responsável por diversos projetos de engenharia militar, com intervenções sobretudo entre 1888 e 1914.
Ver Dicionário de Orientalistas de Língua Portuguesa,
https://orientalistasdelinguaportuguesa.wordpress.com/jose-maria-esteves-pereira/
& Dicionário de Historiadores Portugueses,
http://dichp.bnportugal.gov.pt/historiadores/historiadores_pereira_esteves.htm
Bibliografia selecionada do autor
1888. História de Minás Además Sagad, Rei da Ethiopia. Trad. e anotações de F.M. Esteves Pereira. Sep. Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa 12 (7.ª série, 1887). Lisboa: Imprensa Nacional. Disponível em https://archive.org/details/historiademins00este.
1892. [coautoria com David Lopes] A Peça de Diu. Memória destinada á X sessão do Congresso Internacional dos Orientalistas. Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa.
1892-1900. Chronica de Susenyos, Rei de Ethiopia, 2 vols. [edição e tradução]. Lisboa: Imprensa Nacional/Sociedade de Geografia de Lisboa.
1894. Vida do Abba Samuel do Mosteiro do Kalamon. Versão ethiopica. Memoria destinada á X sessão do Congresso Internacional dos Orientalistas. Lisboa: Imprensa Nacional/Sociedade de Geografia de Lisboa.
1897. Vida do Abba Daniel do Mosteiro de Sceté. Versão ethiopica. Em colaboração com Lazarus Goldschmidt. Quarto Centenário do Descobrimento da Índia. Lisboa: Imprensa Nacional. Disponível em https://archive.org/details/vidadoabbadanie00staagoog.
1899. Historia dos Martyres de Nagran: versão ethiopica. Quarto Centenário do Descobrimento da Índia. Lisboa: Imprensa Nacional. Disponível em https://archive.org/details/historiadosmarty00este.
1903. Vida de Santa Maria Egypcia: versão ethiopica segundo o ms. 686 do Museu Britannico. Lisboa: Typographia do Commercio.
1907. Homilia de Proclo, bispo de Cyzico, acerca da Incarnçaão [sic] de nosso Senhor Jesus Christo. Versão ethiopica. In Actes du XIVe Congrès international des orientalistes, Alger – 1905. Deuxième partie. Section II (Langues sémitiques); Section IV (Égypte. – Langues africaines); Section VII (Archéologie africaine et art musulman). Paris: Ernest Leroux, 199-218. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k65817789.
1915. Crónica da Tomada de Ceuta por El-Rei D. João I, Composta por Gomes Eanes de Zurara. Coimbra: Imprensa da Universidade.
1918. Livro da Montaria Feito por D. João I, Rei de Portugal. Conforme o manuscrito n.º 4352 da Biblioteca Nacional de Lisboa. Publicado por ordem da Academia das Sciências de Lisboa. Coimbra: Imprensa da Universidade. Disponível em http://purl.pt/14553.
1922. Marco Paulo. Lisboa: Biblioteca Nacional. Disponível em http://purl.pt/305.
MPP
última atualização em agosto de 2019