Guilherme de Vasconcelos Abreu (Coimbra, 1842 – Lisboa, 1907)
Bacharel em Matemática, Guilherme Augusto de Vasconcelos Abreu estudou para ser engenheiro naval, mas foi na língua sânscrita que se distinguiu, ao ser o primeiro professor desta língua numa instituição de ensino superior em Portugal.
Iniciou a sua educação em Coimbra, seguindo depois para o colégio de Alexander Grant no Porto até 1858. Após uma curta estadia no Rio de Janeiro, para onde foi enviado a fim de se dedicar ao setor comercial, ingressou na Universidade de Coimbra em 1860. Ali cursou Matemática até 1864 e travou amizade com Francisco Adolfo Coelho, estudando de forma autodidata a língua e literatura sânscritas. Tendo, entretanto, assentado praça, inscreveu-se em 1864 no primeiro ano da Escola do Exército em Lisboa, deixando por concluir o curso de Artilharia. Completou, todavia, o de Engenharia Naval, na Escola Naval, sem descurar o estudo do Sânscrito. Por ocasião da morte do pai (por volta de 1870), ocupou o lugar por ele deixado vago como tabelião em Coimbra, sendo dois anos depois transferido para Lisboa.
Augusto Mendes Simões de Castro (1845-1932) e José Maria da Silva Leal (1812-1883) são alguns dos ilustres da elite cultural portuguesa que o recomendariam, em 1873, exercia então funções de escrivão, como versado na língua dos brâmanes ao arquiteto régio Joaquim Possidónio Narciso da Silva, primeiro delegado português no Congresso Internacional de Orientalistas (Paris, 1873). Em 1874, por insistência do arquiteto, Vasconcelos Abreu aceitou avançar com o projeto de constituição de uma Associação Promotora dos Estudos Orientais e Glóticos em Portugal, da qual Augusto Soromenho chegou a ser secretário e que contava, entre outros, com Cândido de Figueiredo como membro. Não se conhecem iniciativas desta Associação, excetuando a Exposição Feita perante os Membros da Commissão Nacional Portugueza do Congresso Internacional dos Orientalistas Convocados para Constituirem uma Associação Promotora dos Estudos Orientaes e Glotticos em Portugal, que Vasconcelos Abreu proferiu a 29 de dezembro de 1873.
Foi a partir de 1875 que passou a dedicar-se aos Estudos Orientais de forma mais intensiva e profissional. De maio de 1875 a julho de 1877, e por intermediação do Marquês d’Ávila e de Bolama, prosseguiu estudos de filologia oriental, tanto em França como na Alemanha, com uma bolsa financiada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Esta missão científica teria constituído a oportunidade de desenvolver estudos de mitologia comparada, que seria uma disciplina “útil para o conhecimento do estado social e moral dos indígenas das colónias” (Abreu 1878a, 5, n. 2), daqui sobressaindo uma ligação ideológica entre a política de estímulo ao intercâmbio científico e à educação e a política de administração colonial. Via, em particular, a ação colonial britânica na Índia como modelo a seguir para salvaguardar a continuidade da presença portuguesa no espaço indiano; defendia que para se conhecer, e portanto administrar, as então colónias portuguesas, em particular o Estado Português da Índia, era necessário conhecer aturadamente as suas línguas, literaturas e culturas. Dessa missão científica resultaram dois relatórios, publicados em 1878 na Imprensa Nacional; na folha de rosto do segundo, Vasconcelos Abreu subscreve-se como “Discípulo de Haug (Munique) e de Bergaigne (Paris)”.
De acordo com os relatórios, Vasconcelos Abreu chegou à capital francesa em meados de maio de 1875, onde contactou com Abel Bergaigne (1838-1888) na École de Hautes Études e com o professor e tradutor de Sânscrito Philippe-Édouard Foucaux (1811-1894) no Collège de France. Durante a sua estada em Paris, foi membro de júri na exposição do Congresso Internacional de Ciências Geográficas, que aí teve lugar de 1 a 11 de agosto de 1875, e de que foi um dos seus secretários-gerais. Terá inclusive sido agraciado com uma medalha especial pelo trabalho desenvolvido. Em finais de agosto, chegou a Munique. A 3 de setembro conheceu Martin Haug (1827-1876), antigo inspetor dos Estudos de Sânscrito na Universidade de Pune, na Índia. Com ele teve lições particulares antes de iniciar as aulas na Universidade de Munique, a 2 de novembro. Ali aperfeiçoou o seu conhecimento da obra do famoso sanscritista Max Müller (1823-1900), que era membro correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa desde 7 de janeiro de 1870 e cujo trabalho muito admirou e acompanhou de perto. A morte de Martin Haug levou Vasconcelos Abreu a retornar, em outubro de 1876, a Paris, onde teve diversas lições, incluindo de egiptologia com Gaston Maspero (1846-1916), de assiriologia com Julius Oppert (1825-1905) ou de antropologia com Paul Broca (1824-1880), fundador da Sociedade de Antropologia de Paris.
No verão de 1877, Vasconcelos Abreu regressou a Portugal. Foi nessa altura nomeado lente do Curso de Língua e Literatura Sânscrita, Védica e Clássica, estabelecido por decreto de 15 de setembro, em anexo ao Curso Superior de Letras. Logo em 1878, foi introduzida no plano curricular do Curso a cadeira de Língua e Literatura Sânscrita, Védica e Clássica, que deixou assim de estar anexa ao Curso Superior de Letras e foi assegurada por Vasconcelos Abreu até ao final de 1906. O sanscritista entrou nesse ano para o corpo docente do Curso juntamente com o amigo Adolfo Coelho, e ambos tiveram David Lopes, Constâncio Roque da Costa e Jerónimo da Câmara Manuel, entre outros, como alunos.
Entre 1880 e 1884, a doença de que padecia (diabetes) impedi-lo-ia de produzir mais no âmbito da história portuguesa da Ásia, para além de lhe dificultar a locomoção, chegando mesmo a impossibilitá-lo de sair de casa e levando-o a lecionar a partir dali. Não o impediu, porém, de participar no programa das comemorações em Lisboa do tricentenário de Camões, em 1880, ou de, entre 1881 e 1883, ser secretário do Curso Superior de Letras e responsável pela sua biblioteca. Pelo menos nessa década de 1880, esteve também ligado ao Ministério da Marinha e Ultramar, ao integrar a Comissão das Missões Ultramarinas (1882-1883) e tomar parte nas suas conferências através da Sociedade de Geografia de Lisboa, de que se tornou sócio ordinário a 28 de fevereiro de 1880. Aí integrou, por decreto de 12 de agosto desse ano, a Comissão Africana, na qualidade de vogal das Secções de Antropologia e Ciências Naturais e de Ensino Geográfico. Presidiu por diferentes períodos à sua Comissão Asiática (pelo menos em 1891-1892 e 1901), e foi vice-presidente da Sociedade em 1893 e 1894. Em 1898-1899, o seu nome surgiu, de novo, associado à Secção de Ensino Geográfico, a par dos de Luciano Cordeiro ou Gonçalves Viana. Em 1904, presidiu à Secção de Etnografia, tendo Gonçalves Viana por vice-presidente; em 1905, foi inscrito no quadro de honra da Sociedade, por perfazer 25 anos ininterruptos de sócio.
Através desta agremiação, manteve-se sempre muito próximo da cena política, alinhando-se com a visão pedagógica patente nas políticas coloniais das principais potências europeias. Nesse sentido, defendeu a criação, em Lisboa, de um instrumento educativo ao serviço do Estado Português – um Instituto Oriental e Ultramarino, promotor de uma educação científica colonial, cujo projeto apresentou no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa em 1890. Nesse projeto toma como modelos as escolas coloniais existentes em Inglaterra, França, Holanda e Alemanha.
Na década de 1890, acolheu no seu lar tertúlias que Sebastião Rodolfo Dalgado descreveu como “palestras sanscritológicas” (1917, 3), nelas reunindo, além de Dalgado, os seus discípulos Gonçalves Viana e Consiglieri Pedroso, que, ascendendo entretanto a diretor do Curso Superior de Letras, muito se empenhou na contratação do orientalista goês. Com efeito, Sebastião Dalgado sucedeu a Vasconcelos Abreu, a partir de 1907, na cadeira de Língua e Literatura Sânscrita, Clássica e Védica. Do seu círculo lisboeta de amigos orientalistas ou interessados na matéria, destacam-se ainda o tipógrafo da Imprensa Nacional José António Dias Coelho, através de cujo artifício fez entrar em Portugal os caracteres tipográficos em Sânscrito, para além de privar com Joseph Benoliel, Oliveira Martins e Antero de Quental, correspondendo-se também com o historiador Alberto Sampaio (1841-1908).
Seria Reinhold Rost (1822-1896), bibliotecário-mor do India Office, em Londres, que atualizaria a secção indiana da biblioteca de Vasconcelos Abreu, remetendo-lhe para Lisboa livros publicados na Índia. Terá privado com o epigrafista austríaco G. Bühler, a quem ofereceu, em público, por ocasião do Congresso Internacional de Orientalistas em Estocolmo (1889), uma cópia de uma inscrição indiana patente na Quinta da Penha Verde, em Sintra. Há também registos de contacto epistolar mantido com o filólogo Émile Littré (1801-1881), o conde italiano Angelo De Gubernatis (1840-1913), com quem gostaria de ter tido lições de Sânscrito, e com o linguista alemão Hugo Schuchardt (1842-1927).
Foi membro de diversas associações e sociedades científicas e académicas, tanto nacionais como internacionais, destacando-se como sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, para a qual foi eleito a 9 de fevereiro de 1887, do Instituto de Coimbra, a partir de 1883, e da Sociedade de Antropologia de Paris, sendo também membro subscritor da Société Asiatique e sócio da Société Académique Indo-Chinoise (Paris). Sem grande surpresa, o nome de Guilherme de Vasconcelos Abreu surge associado, em diferentes moldes, a quase todos os Congressos Internacionais de Orientalistas que decorreram no século XIX.
Na sequência da realização do I Congresso (Paris, 1873), de que foi membro subscritor a convite de Possidónio Narciso da Silva, fez em Lisboa uma Exposição (1874) aos membros da comissão nacional portuguesa desse congresso, em que, por um lado, exortou à união dos países europeus de origem latina e seu alinhamento com a França para acolher os Estudos Orientais e este tipo de evento científico; sugeriu mesmo que o congresso de 1874 tivesse lugar em Roma, o de 1875 em Madrid e o de 1876 em Lisboa. Por outro lado, ciente da conjuntura histórica e da evolução científica que se estava a testemunhar na segunda metade de Oitocentos, antevia um futuro promissor para Portugal no desenvolvimento do orientalismo como área disciplinar e de investimento académico.
No IV Congresso (Florença, 1878), o seu nome surge inscrito na lista de membros, embora tenha sido marcado como ausente. Também não participou no V Congresso (Berlim, 1881), apesar de, segundo Samarth (1999, 101), o orientalista alemão August Dillmann (1823-1894) ter escrito ao governo português a solicitar o envio de um delegado, chegando mesmo a propor o nome de Vasconcelos Abreu. O seu Manual para o Estudo do Sãoskrito Classico foi, no entanto, remetido para o evento e apresentado na abertura da quarta secção, dedicada à Ásia Oriental e às línguas uralo-altaicas, que foi presidida pelo sinólogo H.G. von der Gabelentz (1840-1893). Em 1883, por ocasião do VI Congresso, em Leiden, o seu nome foi incluído na lista de membros, ao lado do de Gonçalves Viana, ainda que não se tenham encontrado provas de aí ter estado presencialmente. Foi também autor de algumas das publicações oferecidas a este congresso. No VII Congresso dos Orientalistas (Viena, 1886), Vasconcelos Abreu é referenciado na lista dos delegados de Portugal, conquanto, e de novo, marcado como ausente.
O testemunho que dá em Summario das Investigações em Samscritologia desde 1886 até 1891 confirma-o, porém, presente no VIII Congresso (Estocolmo e Cristiania, 1889): “Vi o 1.º vol. desta nova edição em Estockholmo em 1889, onde o sr. Max Müller o apresentou ao Congresso” (Abreu 1891, 13). Segundo o relatório de Joseph de Baye (1853-1931), Vasconcelos Abreu, membro da Academia Real das Ciências de Lisboa e delegado do governo português no evento, seria, a par de Gonçalves Viana, um dos orientalistas mais reputados de Portugal (Baye 1889, 6). Tanto um como outro participaram no congresso, mas sem qualquer intervenção oral.
Poucos anos depois, Vasconcelos Abreu foi convidado a redigir um Summario das Investigações em Samscritologia desde 1886 até 1891 pela comissão organizadora do Congresso Estatutário de Londres de 1891, representada na pessoa de G.W. Leitner (1840-1899). Na sessão de abertura, a 1 de setembro, foram apresentadas 650 cópias do trabalho pelo secretário da comissão organizadora (Leitner); o seu contributo para este congresso foi reconhecido com um diploma de honra e uma medalha de mérito.
Quando a direção da Sociedade de Geografia de Lisboa foi abordada por Leitner para organizar a décima sessão do Congresso de Orientalistas, Vasconcelos Abreu assumiu a vice-presidência da comissão executiva, secretariado por Gonçalves Viana. O relatório que Vasconcelos Abreu redigiu sobre a responsabilidade portuguesa na organização do X Congresso, datado de 15 de junho de 1892, anuncia o desfecho que este viria a ter – o seu cancelamento – e salvaguarda o bom nome da Sociedade de Geografia. Como contributo para o encontro, preparou o ensaio Passos dos Lusíadas Estudados à Luz da Mitolojia e do Orientalismo, que dedicou a Luciano Cordeiro. É o único trabalho por um orientalista português no âmbito destes congressos comportando no título a identificação do campo do saber a que se reporta – “orientalismo”. É também o último trabalho que o orientalista associa a estes congressos; talvez a afronta sentida por a junta de Londres, sob a orientação de Max Müller, estar a organizar, em paralelo e, portanto, em concorrência, um congresso que se reivindicava como o IX Congresso de Orientalistas, simultaneamente deslegitimando o encontro orientalista de 1891, o tenha levado a desligar-se, por completo, desta rede científica.
Deixando alguns trabalhos por concluir ou publicar, Guilherme de Vasconcelos Abreu desempenhou um papel de relevo na emergência dos Estudos Orientais como área de interesse e investigação em Portugal, tendo contribuído com importantes instrumentos pedagógicos (manuais, exercícios e gramáticas) para o estudo e ensino da língua e da literatura sânscritas, que usou nas suas próprias aulas.
Parte do espólio do orientalista, que, em vida, foi agraciado tanto pelo Estado Português como por governos estrangeiros, está depositado na Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (ULFL-Guilherme V. Abreu).
Ver http://vasconcelosabreu.bnportugal.gov.pt/
& Dicionário de Orientalistas de Língua Portuguesa,
https://orientalistasdelinguaportuguesa.wordpress.com/guilherme-de-vasconcelos-abreu/
Bibliografia selecionada do autor
1869. Om! – Adoração a Ganeça. (Episodio do poema oriental – Rámáyana). Jornal litterario: periodico quinzenal destinado a artigos de litteratura e sciencias2-3-4 (1.º ano, fev.): 13-15, 21-22, 28-29.
1878. Investigações sobre o Caracter da Civilisação Árya-Hindu. Lisboa: Imprensa Nacional.
1878. Importancia Capital do Sãoskrito como Base da Glottologia Árica e da Glottologia Árica no Ensino Superior das Lettras e da Historia. Lisboa: Imprensa Nacional.
1880. Fragmentos d’uma Tentativa de Estudo Scoliastico da Epopeia Portugueza. Lisboa: Livreiros Depositários, Cruz & C.ª/Pacheco & Carmo.
1883-1891. Manual para o Estudo do Sãoskríto Classico. Tomo II: chrestomathia. “Curso de litteratura e lingua sãoskritica classica e védica” I. Lisboa: Imprensa Nacional.
1885. A Literatura e a Relijião dos Árias na Índia. Paris: Guillard, Aillaud e Cia.
1891. Portugal and England in Africa. The Imperial and Asiatic Quarterly ReviewI (1, jan.): 104-110.
1891. Portugal and England in Africa. Part II. The Imperial and Asiatic Quarterly ReviewI (2, abr.): 319-322.
1891. Summario das Investigações em Samscritología desde 1886 até 1891: opúsculo escripto a convite da Commissão Organizadora do Congresso Internacional de Orientalistas, Londres, 1891. Lisboa: Imprensa Nacional.
1892. A Responsabilidade Portuguesa na Convocação do X Congresso Internacional dos Orientalistas = Responsabilité qui revient au Portugal dans la convocation du Xme Congrès des orientalistes. Lisbonne: Imprimerie nationale.
1892. Passos dos Lusíadas Estudados à Luz da Mitolojia e do Orientalismo: memória apresentada à X Sessão do Congresso Internacional dos Orientalistas. Lisboa: Imprensa Nacional.
1898. Exercícios e Primeiras Leituras de Sámscrito (apéndice ao manual). Tômo II: vocabulário e notas. “Curso de literatura e lingua samscrítica clássica e védica” II. Lisboa: Imprensa Nacional.
1900. O Instituto Oriental e Ultramarino Português: ideas succintas acerca da sua criação. [S.l.]: [s.n.].
1902. Os Contos, Apólogos e Fábulas da Índia. Influencia indirecta no Auto da Mofina Méndez de Gil Vicente. Lisboa: Imprensa Nacional.
MPP
última atualização em dezembro de 2020